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domingo, 17 de agosto de 2014

A casa

Era uma vez uma casa. Daquelas bem limpinhas, organizadas, delicadamente decoradas. Como nada agrada a todos os gostos, uns se encantavam mais, outros menos, mas o fato é que ela tinha suas maravilhas. 

A dona da casa era bem seletiva. Como tudo lá tinha seu jeito, só entrava quem realmente fosse de confiança. Não que as janelas não ficassem sempre abertas pra arejar a sala e manter contato com todos que andavam na calçada, mas pela porta da frente, mesmo, só passava quem ela podia notar que iria zelar por cada coisinha, que se identificava com cada cantinho, que se sentia à vontade na medida certa: nem demais, pra não extrapolar, já que a propriedade ainda era sua, e nem de menos, pra não criar uma atmosfera pesada. 

No decorrer do tempo, a casa recebeu muitas visitas. Algumas que continuaram bem-vindas, ganharam até lugar cativo, uma cadeirinha cravada com o próprio nome na hora do chá da tarde. Outras que nem quiseram voltar. Umas poucas para as quais as portas se fecharam de vez. 

Até que um dia chegou um hóspede novo. Deu uma olhada pela janela e começou a interagir aos poucos. A porta foi se abrindo dia após dia. Aí ele começou a transitar livre pela sala, depois já tinha permissão pra utilizar a cozinha, ganhou um quarto só seu. Foi fazendo morada, adquiriu a chave e o direito de entrar e sair na hora que quisesse. Mudou de canto aquilo que achava estar errado, revirou as gavetas e encontrou todos os segredos escondidos. Deixou pertences espalhados por cada cômodo, deu presentes que iam mudando a cara do lugar. Saiu do posto de hóspede pra ocupar o de um quase proprietário, junto com a dona. Possuía passe livre pra fazer o que bem entendesse.

Depois de um tempo, ele cansou. Não sentia mais que aquele era seu lar e resolveu partir. Saiu arrombando as portas, arranhando a pintura das paredes, derrubando a decoração, destruindo tudo que era sólido. Foi embora e não olhou pra trás. Levou muito do que era parte da casa mesmo antes de sua presença, deixou muito do que passou a fazer depois que havia chegado. 

A casa acabou arrasada. A dona, também. Não podia acreditar que aquele recanto com o qual ela tinha tanto zelo estava perdido. Por muito tempo, ficou tudo intocado. Não havia coragem suficiente para remexer no que tinha sobrado, todas aquelas tralhas misturadas com memórias do que aconteceu. Foi uma fase de muito desgosto, de ir vivendo sem esperança de nada, em meio às cinzas do que um dia havia sido tão ensolarado.

Mas a dona sabia que aquela situação não podia mais se estender. Acordou numa dessas manhãs preguiçosas, colocou uma música pra tocar e foi lá garimpar entre o que deveria ficar e o que tinha que ser jogado fora. Se livrou de tudo aquilo que não condizia mais com a realidade, deixou permanecer apenas o que poderia ser renovado e adquirir novo significado. Varreu pra fora toda a sujeira, tentou purificar o ambiente com todos os produtos de limpeza que tinha ao alcance. Organizou novamente as coisas do jeito que gostava, gavetas, armários e prateleiras. 

A parte mais superficial, ela sentiu que já estava se estruturando. Talvez outras pessoas já quisessem habitar novamente aquele lugar, já se sentissem atraídos. Mas ela não queria deixar. Tinha ainda tanta coisa a ser feita... Encanamentos a consertar, acabamentos a fazer, polimentos, pinturas. A casa ainda não havia retornado ao seu estado inicial, e na realidade, nunca o faria. Mas ainda poderia chegar a uma nova era, de mais beleza e mais esperança, talvez. 

Pra que isso aconteça, a dona sabe que precisa de ajuda. Que não é nenhuma bombeira, pintora, encanadora ou pedreira pra consertar os estragos mais profundos. Mas que tudo depende dela, porque não adianta chegar qualquer um se não for fazer exatamente o que ela idealizou pro lugar. Ela ainda não está preparada pra visita, mesmo que confie cegamente em quem bate à porta. Aquele universo que é tão dela e que ela havia criado com o maior amor continua um pouco oco, um pouco sem brilho... É capaz de permanecer assim até que ela deixe de lado o medo de deixar alguém entrar. Porém, talvez, ainda haja um pouco de poeira empurrada pra debaixo do tapete, um cofre guardadinho com chave que ainda abriga certas reminiscências. 

Existem marcas que nunca se apagarão, mesmo com várias demãos de tinta, mesmo com um papel de parede. Elas não incomodam tanto, apesar de tudo. Entretanto, continuam existindo... É o que ainda prende a um passado, o que ainda cria fantasmas que assombram. Ainda tem um quarto vazio que insiste em querer pertencer ao mesmo dono, mas que tem uma plaquinha de "há vaga". Ainda tem muito reparo a ser feito.

E é por tudo isso, que, sim, a casa ainda está fechada para visitação. A garantia de que um dia ela abre novamente é que não houve demolição, ela ainda tá lá. É só esperar. 

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